05/02/2024

Conexões entre a atual reestruturação da política pública de economia popular e solidária no Brasil e a Resolução da Organização das Nações Unidas (ONU): breves comentários

Leandro Pereira Morais [1]
Renata Pinho Studart Gomes [2]

O ano de 2023 pode ser considerado de grandes avanços para a economia solidária, tanto em âmbito global, quanto nacional, tendo em vista, respectivamente: a aprovação, pela ONU, em abril de 2023, da Resolução Promover a economia social e solidária para o desenvolvimento sustentável [3] e a reestruturação das políticas públicas de economia solidária pelo novo governo brasileiro no contexto de ressurgimento da agora Secretaria Nacional de Economia Popular e Solidária (SENAES)[4]. Este artigo tem como objetivo registrar, de forma panorâmica, alguns breves comentários acerca das conexões entre ambos os acontecimentos.

Como já enunciado, em 2023, pela primeira vez em sua história, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou uma Resolução para a ESS. A Resolução supramencionada, incentiva os Estados Membros da ONU a promover e implementar estratégias, políticas, programas e ações nacionais, locais e regionais para apoiar e fortalecer o que consideram como “economia social e solidária” (ESS), com base na devida institucionalização, criação de estatísticas nacionais, oferecimento de incentivos fiscais, garantia de compras públicas, iniciativas para aprimoramento de formação e de capacitação, além de desenvolvimento de pesquisa. A Resolução também preconiza a relevância do papel das instituições financeiras multilaterais, internacionais e regionais a apoiarem a ESS.

Entendendo-se que a Resolução da ONU se constitui um relevante e pertinente instrumento sensibilizador e balizador para a elaboração e operacionalização de políticas públicas de ESS, a ideia é refletir acerca de como, no caso brasileiro, este momento de reconstrução da política pública de economia solidária (como é designado no Brasil) dialoga com os principais elementos constitutivos desta Resolução.

Nesta perspectiva, cabe lembrar que a SENAES é parte da história de mobilização e de articulação do movimento da economia solidária existente no país desde 1980, bem como do espaço de discussão e articulação nacional concebido no I Forum Social Mundial, incluindo a criação do Fórum Brasileiro de Economia Solidária. Um  rápido olhar acerca dos principais temas contemplados pela política pública nacional, via SENAES, desde 2003, nos revela, como principais áreas prioritárias: i) fomento e assistência técnica aos empreendimentos econômicos solidários (EES) e às redes de cooperação; ii) promoção do desenvolvimento local por meio da atuação de Agentes de Desenvolvimento Solidário; iii) fomento às finanças solidárias com base em bancos comunitários e fundos solidários; iv) formação de formadores(as), educadores(as) e gestores públicos; v) organização nacional da comercialização dos produtos e serviços de EES; vi) Sistema Nacional de Comércio Justo e Solidário; vii) Centros Públicos de Economia Solidária; viii) cadastro de EES e entidades de apoio para o Sistema de Informação em Economia Solidária (SIES); ix) recuperação de empresas por trabalhadores organizados em autogestão; x) desenvolvimento e disseminação de conhecimentos e tecnologias sociais e fomento à Incubadoras (Chiariello, Fonseca & Morais, 2021)[5].

No que se refere ao orçamento público, Silva (2020)[6] nos mostrou que, em termos da evolução da política na agenda federal, as evidências apontaram para diferentes estágios, com base na análise dos Planos Plurianuais (PPAs): i) “inserção e consolidação”, abrangendo os dois primeiros PPAs (2004-2007 e 2008-2011); ii) “expansão contraditória” (PPA 2012-2015), em que a política nacional de economia solidária conviveu  com elevação na dotação orçamentária anual, mas com queda acentuada no seu percentual de execução e iii) “crise de paradigma” (PPA 2016- 2019), onde se observou a tendência de redução tanto dos volumes orçamentários anuais, quanto dos valores efetivamente gastos, representando menos de um terço dos valores médios anuais dos momentos anteriores. Essa tendência se manteve (e até mesmo piorou) com a gestão do governo federal que assumiu em 2019, quando o tema foi praticamente banido do PPA 2020-2023, implicando no sepultamento da política pública federal nesta área e afins.

Ambiciona-se, a partir de 2023, um contexto favorável para o avanço da economia solidária com o novo Governo federal e suas manifestações de ressurgimento e de reestruturação da SENAES, de maneira transversalizada, isto é, com abrangência em outros Ministérios, para além do Ministério do Trabalho e do Emprego. A transversalidade e a intersetorialidade dessa política se expressam na construção participativa do programa “Economia Popular e Solidária Sustentáveis” do novo PPA 2024-2027, cujo objetivo é fortalecer as iniciativas de Economia Popular e Solidária e a construção de redes produtivas, fundamentadas nos princípios da autogestão, cooperação, sustentabilidade ambiental, participação popular e na valorização das dinâmicas territoriais.

Conforme notou Machado (2023)[7], ao mencionar uma fala do atual secretário de Economia Popular e Solidária, Gilberto Carvalho: “A economia solidária não pode ser reduzida a um mero nicho dentro do   governo   e na   sociedade, um   tipo   de   proposta, dentre outras, de organização autogestionária do trabalho e da economia (…). No bojo da nova revolução econômica, a economia solidária tem que dar forma, consistência para um novo padrão de funcionamento econômico nacional, propagando novas formas de gestão coletiva do capital e dos meios de produção” (p. 12).

Adicionalmente, outra dose de esperança no que tange ao fortalecimento da economia solidária no Brasil, trata-se do lançamento, em 23 de agosto de 2023, da Frente Parlamentar de Economia Popular e Solidária. Formada por 204 dos 513 deputados e 20 dos 81 senadores da República, através da coordenação dos deputados Carlos Veras (PT/PE) e da deputada Jackeline Rocha (PT/ES), esta Frente nasce com cinco grandes objetivos: a) avançar no marco legal nacional; b) garantir recursos para as políticas públicas; c) estimular Frentes estaduais de economia solidária; d) aprofundar o debate acerca da economia solidária no Congresso Nacional e e) conectar a agenda da economia solidária às pautas e agendas internacionais. Tais objetivos nos parecem dialogar com os propugnados pela Resolução da ONU.

No quadro a seguir, pretende-se elencar algumas destas ações que estão sendo definidas e/ou adotadas, na prática cotidiana da SENAES neste primeiro ano de reconstrução institucional, tendo como referência os principais elementos constitutivos da Resolução da ONU.

Elementos constitutivos Ações práticas de 2023 Resultados e/ou perspectivas
Institucionalização Instituição, por Lei, do Programa “Economia Popular e Solidária Sustentáveis” no Plano Plurianual 2024-2027 do Governo Federal. Ampliação do orçamento da SENAES e coordenação das políticas de economia popular e solidária.
Reinstalação do Conselho Nacional de Economia Solidária (CNES). Atualização do Decreto sobre a instituição e composição do CNES, realização de uma Conferência Extraordinária de Economia Popular e Solidária em 2024 e ampliação da participação popular nas políticas públicas da SENAES.
Recriação, por Decreto, dos Núcleos de Economia Popular e Solidária na estrutura das Superintendências do Trabalho, em todas as unidades federativas do Brasil. Fortalecimento da capilaridade das ações da SENAES, consolidação das articulações estaduais e facilitação do acesso às políticas públicas para o segmento da economia popular e solidária.
Rearticulação do Programa Nacional de Apoio ao Associativismo e Cooperativismo Social – Pronacoop Social. Publicação de Decreto atualizado, instalação do Comitê Gestor e execução de ações voltadas ao desenvolvimento de cooperativas sociais, que visam a inserção social laboral e econômica de pessoas em desvantagem, e empreendimentos econômicos solidários sociais.
Reinserção internacional do SENAES nos espaços de discussão e deliberação de ações voltadas à economia popular, social e solidária. Atuação no acompanhamento e monitoramento das obrigações internacionais assumidas pelo Estado brasileiro em matéria de economia popular e solidária, construção de foros regionais e documentos referenciais, intercâmbio de boas práticas e articulação para visibilidade da agenda.
Criação de estatísticas nacionais Recriação de um sistema eletrônico de cadastro das iniciativas econômicas solidárias – CADSOL. Instituição, em curto prazo, da comissão nacional, das comissões estaduais em todo o país, e das comissões municipais onde há política de economia solidária. Em médio prazo, mobilização para novos cadastramentos e atualização das informações dos 27 mil empreendimentos mapeados até 2018.
Formalização de projeto com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE). Realização de estudos, pesquisas, oficinas e visitas técnicas para rearticulação do Observatório de Economia Solidária.
Construção de projeto sobre contas-satélites em economia solidária. Elaboração de metodologia para instituição de contas-satélites em economia solidária, em articulação com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE.
Compras públicas Publicação de Acordo de Cooperação Técnica Secretaria Geral da Presidência da República e mais dez órgãos públicos federais com o objetivo de execução de ações conjuntas para promoção e consolidação do ECOFORTE – Programa de Fortalecimento e Ampliação das Redes de Agroecologia, extrativismo e produção orgânica. Promover a organização e o fortalecimento de redes, cooperativas e organizações socioprodutivas e econômicas cadastradas no CADSOL, desenvolver estratégias e instrumentos de comercialização de seus produtos e serviços, com ênfase às compras governamentais e na constituição de estruturas e espaços de comercialização direta.
Formação, capacitação e pesquisa; Publicação, por Portaria Ministerial, do Programa de Qualificação Social e Profissional tendo a Economia Popular e Solidária como um dos setores econômicos prioritários de formação. Formação, em 2024, de 2.880 integrantes de iniciativas econômicas solidárias em todo o Brasil. Em médio prazo, a reimplantação do plano setorial de qualificação em economia popular e solidárias para promoção do trabalho associado, participativo e autogestionado.
Construção do Sistema Nacional de Formação em Economia Popular e Solidária. Constituição de uma estratégia em rede que combina três dimensões: articulação, organização e formação de grupos de trabalhadores envolvidos em iniciativas de economia, trabalho autogestionado e geração de renda nos territórios.
Construção do Programa de Agentes Populares em Economia Popular e Solidária, mediante formalização de parceria com a Fundacentro. Atuação em 2024 de 1.000 agentes populares, remunerados com bolsa de extensão, para trabalhar em processos educativos e organizativos no território em que estão inseridos.
Rearticulação do Programa Nacional de Incubadoras de Cooperativas Populares – PRONINC. Publicação de Decreto atualizado, instalação do Comitê Gestor e execução de ações voltadas ao fortalecimento dos processos de incubação de iniciativas econômicas solidárias nos territórios.
Apoio de instituições financeiras Construção do Sistema Nacional de Finanças Solidárias. Consolidação de uma rede de cooperativas de crédito, bancos comunitários e fundos rotativos para fortalecimento do financiamento a iniciativas da economia popular e solidária.
Atuação junto ao Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador – CODEFAT para análise das alternativas de acesso ao Fundo de Aval para Geração de Emprego e Renda – FUNPROGER e às operações de crédito com recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador – FAT. Ampliação do acesso ao crédito e microcrédito orientado ao segmento da economia popular e solidária.

Fonte: Elaboração própria a partir das ações da SENAES (2023)

Considerações finais

A retomada e o fortalecimento das políticas públicas de economia popular e solidária no Brasil evidenciam a resistência dos movimentos sociais no último período e os esforços conjuntos entre o governo, sociedade civil e diversas organizações na reafirmação do compromisso com a justiça social, a inclusão socioeconômica e o desenvolvimento sustentável.

Todas as iniciativas implementadas no período de 2003 a 2016 abrangendo os processos formativos da educação popular, a criação de redes de cooperação, o acesso a financiamentos e a facilitação da comercialização, demonstram o potencial transformador da economia solidária. Estas ações foram, e tem sido, essenciais para posicionar a economia solidária como uma estratégia de desenvolvimento econômico do país.

A realidade atual, marcada por desafios como o retorno ao mapa da fome, especialmente nas periferias urbanas – abrangendo não apenas a fome de alimento, mas também de saúde, educação, cultura, esporte, entre outros – e a ascensão de discursos de extrema direita; impõe governo federal uma concepção de uma nova geração de políticas públicas que incorporem elementos emancipatórios essenciais para estruturar programas eficazes de trabalho, renda, direitos e fomento à consciência cidadã.

Destaca-se, portanto, a necessidade de fortalecer a dimensão intersetorial das políticas públicas e a articulação, cooperação e complementaridade entre elas, desde a esfera nacional à execução local, assim como orienta a Resolução da ONU. O objetivo é, não apenas sustentar os princípios da economia solidária, mas também ampliar sua estratégia, aumentando seu reconhecimento e valorização tanto no cenário nacional quanto no internacional.

[1] Professor Doutor do Departamento de Economia da Universidade Estadual Paulista – UNESP e Membro da United Nations Task Force on SSE (UNTFSSE). E-mail: leandro.morais@unesp.br

[2] Diretora de Projetos da Secretaria Nacional de Economia Popular e Solidária, do Ministério do Trabalho e Emprego (SENAES/MTE). E-mail: renatapsgomes@gmail.com.

[3] Disponível em: https://undocs.org/Home/Mobile?FinalSymbol=A%2F77%2FL.60&Language=E&DeviceType=Desktop&LangRequested=False

[4] Interessante ver: CARVALHO, Gilberto. Em diálogo com o Fórum Brasileiro de Economia Solidária. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=T14K2Zza6LQ. Acesso em: 19 jan. 2023.

[5] CHIARIELLO, C. L.; FONSECA, S.; MORAIS, L. Abordagem política e institucional da economia solidária na América Latina e a experiência da SENAES no Brasil (2004-2019). Otra Economia, Revista Latinoamericana de Economía Social y Solidaria, v.14, 2021, p. 76-95.

[6] SILVA, S. A política nacional de economia solidária no ciclo de planejamento orçamentário (2004-2019). In: SILVA, S. P. (Org.). Dinâmicas da economia solidária no Brasil: organizações econômicas, representações sociais e políticas públicas. Brasília: IPEA, 2020.

[7] MACHADO, A. Economia solidária e as novas exigências do diálogo social – 2023. In: Revista P2P e Inovação, v. 9, p. 6-23, jun. 2023. Disponível em: https://revista.ibict.br/p2p/article/view/6249

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